terça-feira, 16 de junho de 2015

O Conde e o Demônio

O conde recitou o encantamento e as paredes começaram a tremer. Em poucos instantes a obumbração tomou conta de tudo. As chamas das tochas tornaram-se azuis. O símbolo vermelho destacava-se ainda mais no chão, por onde as correntes que se estendiam até a porta começavam a se espalhar como ramificações de tripas e sangue, pintando parte da sala de rubro. Kulack sentiu uma repentina tontura. Apertou as mãos com força, e seu anel brilhou intensamente. Concentrou-se, com os olhos fechados. Suava frio e sentia como se um gigante tentasse esmagar seu corpo. Uma pressão aterradora parecia pronto para implodi-lo, e ele lutava internamente para suportar. Sentiu suas entranhas saírem pela boca, e suas pernas sendo decepadas por foices negras que desapareceram um instante após as cortar. Seus braços sumiram e brotavam de suas costas, esticando-se até a altura do pescoço, onde suas próprias mãos o estrangulavam. Seus olhos se tornaram verdadeiras safiras e faziam sangue jorrar pelas frestas das órbitas. As correntes de sangue se somaram em uma poça rubra, formando uma besta horrenda. Tinha o corpo de um cão selvagem, embora com o dobro do porte, e suas duas cabeças fundiam traços de leão e búfalo, com grandes chifres e juba negra. Na parte traseira, três caudas que terminavam em uma espada, uma lança e uma maça encravada de espinhos. Suas quatro asas eram formadas por uma mistura de escamas de dragão e penas de águia.

Sem prévio aviso, o monstro atacou a aberração que o capitão havia se tornado, afligindo-o com as caudas, triturando-o com os dentes e rasgando sua carne com as garras de cão selvagem. Mas Kulack não morreu. Ele não conseguia morrer. Seus pedaços estripados espalhavam-se por toda parte e, apesar do terror, seus dois olhos de safira ainda tinham luz e eram capazes de enxergar, um em cada canto do salão. A dor só não era maior do que o pavor, e ele estava amaldiçoado a sentir ambos, sempre que conjurasse a magia que burlava as leis espirituais e materiais; sempre que invocava aquele homem...

O símbolo no chão desapareceu subitamente, assim como as ramificações de sangue e o monstro abominável, que simplesmente sumiu como se nunca tivesse existido. Kulack sentia seu corpo voltar ao normal, mas as tochas continuavam azuis. Em sua frente, um homem com porte de guerreiro o observava, vestido em uma armadura negra, mais enferrujada que qualquer peça de metal que o conde já tivesse visto. A própria presença daquele homem o fazia sentir como se ele envelhecesse mais rápido. Parecia apodrecer pouco a pouco, a cada segundo que permanecia na presença dele.

— Ainda não se acostumou, conde? — disse o guerreiro, com um tom de desdém. Sua voz era inumana, como se vários homens falassem ao mesmo tempo, gerando um som nada agradável de ouvir. 

— Não sou um demônio como você, nunca irei me acostumar — rebateu Kulack, limpando o suor da testa com as costas das mãos, cansado após a tortura que seu espírito e sua mente haviam passado.



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