terça-feira, 20 de março de 2012

Dragoria - Contos Perdidos (Parte II)

Mais uma noite fria chega à capital de Dragoria. O rei Belthasar Ganfourt esperava sentado na escadaria que levava à entrada do castelo. Seus servos já estavam acostumados a ver seu senhor jogado em um canto qualquer. Certa vez, em uma reunião com alguns nobres do sul, todos esperavam por sua presença à mesa para tratar de negócios. Mandaram construir uma poltrona de ouro e topázios apenas para a especialíssima ocasião. Belthasar chegou, ignorou o assento, sentou sobre a mesa, serviu-se de vinho, bebeu dois goles e arrotou.
Duas crianças com arcos nas mãos corriam na direção do Velho Leão. O mais jovem tinha oito anos, o outro doze. Atrás deles vinha um homem aparentando trinta anos de idade, usando uma bela armadura de couro com um broche prendendo sua capa.
- Estão atrasados! Ausdir, que treino mais demorado é esse? - indagou o rei.
- Perdão, meu senhor, os garotos estavam empolgados, eles evoluíram bastante. São muito esforçados - o servo era alto e esguio, carregava uma espada curta na cintura.
- Se me chamar de "meu senhor" mais uma vez, quebro o seu nariz, e cada vez que você se esquecer que deve me chamar apenas de Leão, terá um osso quebrado, ouviu bem? - a voz rouca do leão ameaçava ainda mais que as palavras.
O servo real engoliu em seco, esboçou um sorrio amarelo e disse:
- Sim, meu se... sim grande leão.
O rei se levantou calmamente, caminhou em direção ao guarda, tentando manter a afeição séria, mas não o fez muito bem. Deixou as gargalhadas escaparem. Suas risadas foram acompanhadas pelas risadas forçadas de Ausdir. Os dois garotos observavam tudo, já estavam acostumados com a cena.
- Hoje eu acertei o alvo a vinte metros de distância – disse o garoto mais velho, se gabando.
- Pare de se exibir! – retrucou o mais jovem.
- Parem vocês dois! Se quiserem provar alguma coisa, tentem alcançar o grande leão!
Belthasar saiu correndo pelo castelo, seguido pelos garotos que tentavam alcançá-lo. Mesmo aos sessenta anos de idade, ainda sobrava fôlego para correr e brincar com seus filhos mais novos. Adorado em todo o reino de Dragoria, sua história fora escrita nos campos de batalha. Após muitos anos de conflitos, Tenemus e Dragoria passavam por um período de algo parecido com paz. Mas ninguém sabia quanto tempo iria durar.

(...)

Os comandantes do exército dragoriano estavam presentes no salão principal, à espera do rei que, como de costume, estava atrasado. Além deles havia também alguns conselheiros, nobres de famílias importantes e soldados experientes.
E então surgiu o rei, seguido por seu filho mais velho, Richard Ganfourt, de vinte e cinco anos, com sua armadura prateada ostentando a cara de um leão moldado no peitoral, portando sua espada de duas mãos. O filho do grande leão era conhecido como “Leão Branco”, e desde os dezoito anos de idade já estava na linha de frente do exército dragoriano.
Richard se posicionou ao lado dos comandantes, enquanto seu pai completava seu percurso até o trono. 
O rei, após sentar-se, olhou para os lados, e com expressão de desapontamento perguntou:
- Onde está o meu vinho?
Um servo se aproximou rapidamente para o servir. Um dos comandantes, o mais velho deles, portando um grande escudo e uma espada, se aproximou e começou a falar:
- Grande Leão - iniciou, com cautela. - Venho servindo fielmente durante décadas, sem nunca contestar ou questionar suas ordens. Servi ao seu lado em todas as batalhas, estive na linha de frente em todas as vezes que nossas espadas tiveram que proclamar a justiça e a paz do reino de Dragoria. Não me entenda mal, meu senhor, mas a rainha morreu misteriosamente há mais de dois anos, e de lá para cá coisas estranhas vêm acontecendo em todos os nossos campos. Por que temos tanta confiança em Tenemus, sendo que eles foram nossos inimigos por gerações? - a fluidez do discurso revelava que o sujeito havia decorado a fala antes de divulgá-la.
Todos estavam comentando em voz baixa e sussurrando sobre as palavras do Comandante Barvarus II, já que ele falava não apenas por si mesmo, mas por todos os que ali estavam.
- Barvarus, o que aconteceu com a rainha foi uma fatalidade, um acidente! – disse um dos conselheiros.
- Cidades vêm sendo saqueadas nos arredores das fronteiras com Tenemus! - bradou um soldado, em contestação.
- Plantações foram totalmente devastadas, e os camponeses disseram que viram homens de capa azul deixando o local com seus cavalos! - outro nobre adicionara lenha à fogueira da discussão.
Mais e mais indícios eram apontados pelos nobres daquela sala. O príncipe apenas observava, já sabendo como seu pai reagiria. O Grande Leão levantou de seu trono e sacou sua espada. O som do metal deslizando na bainha fez com que todos se calassem.
- Vocês querem sangue? Querem batalhas e sacrifícios? – gritou o rei.
- Não se trata de sacrifícios, meu senhor. Queremos justiça.
Todos na sala levantaram suas espadas e gritam o nome de Dragoria.
O príncipe se aproximou de seu pai:
- Entendo que o senhor tenha lutado por paz durante anos, meu pai, mas mesmo a paz precisa de manutenção. Não podemos fingir que não está acontecendo nada, não podemos nos cegar diante desses ataques.
- O que aconteceu com a sua mãe foi uma fatalidade! O que Tenemus poderia ter a ver com um acidente a cavalo?
- E por acaso temos controle sobre nossos criados? Sabemos quantos de nossos servos são ou não são estrangeiros? E mesmo que não fossem, o senhor sabe muito bem que o ouro pode comprar a alma dos homens mais mesquinhos.
- Homens sem honra - reforçou o rei.
- O senhor me ensinou que felinos adotados podem ser traiçoeiros, talvez alguns de nossos homens também sejam - as palavras do príncipe eram sensatas e calculadas. O contrário do impulsivo pai.
Belthasar caminhou em direção ao centro da sala, rodeado por seus soldados.
- Justiça será feita, eu...
Foi quando um soldado adentrou correndo pelo salão principal, quase sem fôlego e aparentemente exausto.
- Senhor, senhor! Os garotos! A carruagem onde eles estavam, senhor, precisamos encontrá-los!
Os filhos do rei haviam saído para passear após o almoço, guiados por Ausdir, iriam aos arredores da cidade de Namish.
- O que aconteceu com meus filhos?! - perguntou o monarca, já preocupado mesmo sem saber a resposta; coisa boa não poderia ser.
- Venha meu senhor, eu explicarei no caminho.
Os nobres ficaram surpresos com a interrupção, sem entender o que estava acontecendo, começam a conversar em voz alta, causando confusão e muito barulho. Em meio a isso, rapidamente é organizada uma equipe para sair em busca dos filhos do rei. Enquanto preparavam os cavalos, o soldado explicara que havia recebido um pergaminho enviado por Ausdir, através de um mensageiro. No pergaminho dizia que foram pegos em uma emboscada na floresta a caminho de Namish, e que eram cinco os inimigos restantes: soldados de elite. Ausdir não poderia lutar contra todos e proteger os garotos ao mesmo tempo. Solicitou que reforços fossem enviados imediatamente.
O rei partiu em direção à floresta, acompanhado de dez de seus mais habilidosos soldados. Richard foi obrigado a ficar no castelo para representar seu pai enquanto ele não estivesse.
São mais de seis horas de cavalgada, a noite chega. Adentram a floresta.
- Devemos nos dividir para aumentar nossas chances de encontrá-los, a floresta não é pequena – disse um dos soldados.
- Se nos separarmos, perderemos nossa vantagem numérica – respondeu outro cavaleiro.
Todos pensam em sugerir que voltem para o castelo e retornem as buscas no outro dia, mas ninguém fala a respeito, sabiam que o rei só sairia daquela floresta com seus filhos.
Ouviu-se um grito de dor, todos olharam para trás, um dos soldados estava com uma flecha cravada no meio do peito. Seu cavalo saiu em disparada derrubando o corpo e deixando-o para trás. Os outros cavalos também se agitaram.
- Apareçam covardes! – bradou o Rei.
Mais setas são atiradas, e mais dois soldados caem. O cavalo do rei é atingido, e acaba caindo também. Belthasar rola pelo chão, mas rapidamente se levanta.
Todos são abatidos um a um, até sobrar somente o rei, e outros dois soldados. As flechas parecem vir de três pontos diferentes. Belthasar puxa uma adaga da cintura. A lâmina prateada brilha, o aço cintila no escuro. Em um movimento rápido, ele a atira para a esquerda ao breu da floresta, dois segundos depois, o som de um corpo caindo do alto de um galho de árvore reverbera alto como um estrondo.
- Um covarde ao chão! – comemorou o Grande Leão.
As flechas cessaram.
Surgem dois homens por entre as árvores. Um deles é Ausdir. Ele está com os dois filhos do rei, que estão desacordados e amarrados.
- Mas o que significa isso? - a fúria sendo cuspida pela boca do rei.
O servo permanece em silêncio.
O outro homem era um sujeito vestindo um manto marrom que cobria todo o seu corpo. Tirou o capuz em um movimento lento, empurrando-o para trás, aparentava ter cerca de quarenta anos, tinha cabelos e olhos negros. Em sua mão, um arco, nas costas: uma aljava sem flechas.
- Impressionante. Como conseguiu acertar meu subordinado com uma adaga a metros de distância na escuridão da floresta? – perguntou o inimigo misterioso.
- Leões possuem olhos capazes de enxergar muitas vezes melhor que qualquer homem, mesmo na noite - uma história que ele ouvira de um velho conselheiro, e mesmo sem comprovar a veracidade, tomou como verdade.
- Você não é leão, rei de Dragoria. É apenas um velho que já foi forte um dia, e que hoje é apenas uma sombra do que costumava ser - rebateu Ausdir.
Um dos soldados que havia sobrevivido ao ataque apontou sua espada para os inimigos.
- Terei sua cabeça!
Num movimento impensado, partiu pra cima do inimigo atacando com um corte diagonal. O misterioso oponente desviou facilmente dando um passo ao lado, com suas mãos, imobilizou os braços do soldado e, usando seu pé direito, aplicou uma rasteira que jogou seu adversário no chão. Tomou-lhe a espada e atravessou sua garganta.
- Agora tenho uma espada. Eu sabia que não precisaria carregar mais do que um arco. Seus soldados me equipariam com suas armas.
- Se atacarem de novo, não irei poupar a vida desses garotos – ameaçou Ausdir.
- Eu vou arrancar a sua cabeça com meus próprios dentes, seu traidor! – a voz do rei era imponente.
- Sua vida pela vida de seus filhos. Tem minha palavra. Não deixarei que os machuquem – arriscou o assassino.
- Lutaremos aqui e agora, para pôr um fim nisso! - o rei convidava para um duelo.
E então uma flecha atravessou o pescoço do outro soldado que havia restado. Ele caiu no chão enquanto seu sangue quente espirrava banhando as botas do rei.
- Quando as flechas começaram a ser lançadas, demorei um tempo para perceber que eram três inimigos ao invés de cinco. Abati um com a minha adaga, então... deveriam restar apenas vocês dois - Belthasar murmurava, tentando entender o que estava acontecendo.
- Você é tão cheio de si, que em momento algum passou pela sua cabeça que o seu ataque poderia ter falhado? - perguntou Ausdir.
E um um homem ferido surge como um fantasma na noite, com seu arco já acordoado, apontado a seta na direção ao Grande Leão. Em seu ombro direito, um corte feito por lâmina deixava escorrer um filete de sangue. Belthasar logo percebeu que sua adaga havia feito aquilo.
- Vamos, me ataque, eu esmagarei vocês três! - o leão nunca desistia.
A flecha é disparada. Belthasar brande sua grande espada e parte a flecha em dois, em pleno ar, o impacto muda a trajetória da parte dianteira que é desviada de seu alvo. Ausdir, incomodado com a destreza do rei, largou as crianças no chão e partiu para cima do adversário. As espadas de ambos os combatentes se encontraram e o som estridente das lâminas ecoou pela floresta. Belthasar conseguiu segurar sua espada com uma das mãos em um instante, soqueando seu inimigo no rosto em um movimento veloz, voltando a segurar a espada com as duas mãos. Com um ataque certeiro, golpeou o peito de seu antigo servo, abrindo um grande corte em seu tórax. Ausdir é jogado para trás.
Mas então o rei sentiu a dor aguda fincando na alma. Uma flecha atravessara a perna de Belthasar, em uma das frestas da armadura, onde acabava a joelheira. Mais uma flecha, agora na panturrilha da outra perna. O Leão caiu de joelhos, de costas para seu inimigo.
- Nos contos antigos - a voz vinha do arqueiro ferido -, afirmava-se que o leão era extraordinariamente feroz e ágil, e que a única maneira de despistá-lo era deixando espelhos para trás. O leão seria distraído por seu próprio reflexo, pensando tratar-se de um filhote. Não é irônico? Você não parece tão feroz caído de joelhos. Acaba de ser derrotado justamente por vir atrás de seus filhotes. Agora, tanto você quanto eles serão mortos - o som do arqueiro preparando-se para atacar pelas costas com sua última flecha fazia a coragem de Belthasar congelar. Esticou a corda até o seu ponto máximo.
- Diga-me seu nome, meu ceifeiro! – Belthasar estava ofegante e cuspia sangue, mas exigia saber o nome de seu algoz.
- Jon Roward – respondeu o Arqueiro, sem vacilar.
A flecha atravessou o crânio do Grande Leão, saindo pelo seu olho esquerdo. Seu corpo sem vida caiu no chão como um objeto inanimado qualquer.
As crianças acordaram, olhando para o corpo de seu pai que está morto diante de seus olhos. Elas demoram para assimilar a realidade.
- Digam ao príncipe que hoje começou as investidas do caçador de leões, e que ele não mata filhotes - apesar de ter dito ao rei que mataria seus filho, não era verdade. - Agora vão, antes que eu mude de ideia.
As crianças correm chorando, desorientadas. Se quiserem ser leões de verdade, terão que sobreviver à floresta.